sábado, 30 de maio de 2009

O preço da liberdade

De repente, aqueles belos olhos se tornaram diabólicos. Tão cruéis que ele sentia nojo e repugnância apenas de olhá-la. Uma imagem bizarra, escatológica, nada semelhante à antiga beleza que o seduzira traiçoeiramente. A ânsia que sentia é indescritível, o reflexo do sol em seu rosto ofuscava a visão, mas era uma luz estranha, querendo cegar-lhe até que seus olhos fossem derretidos. O tom de voz, antes doce, agora possuía um agudo insuportável.

Claro, sua mágoa valorizava o cenário do imaginário, mas, na verdade, já não sentia. Nem raiva, nem mágoa, nem rancor, nem arrependimento, menos ainda atração. Uma completa apatia pelo ser a sua frente, mirando-o, tentando pronunciar palavras incertas, frases incompletas. Mas seus ouvidos já não sabiam escutar. Estava livre de todas as promessas, de todas as exigências, de tudo aquilo que transtornava o seu emocional. Apenas uma sensação de inigualável alívio. Que levassem tudo o que lhe restou, exceto a paz que nesse instante conquistara.

Chuva e sol brindavam, simultaneamente, aquele momento. Mas nem mesmo a sensação de calor contrastada à água quase fria passava pelo universo de sua percepção. O intuito daquele momento ocupava todo o seu ser, percorrendo em suas vísceras a neutralização entre ódio e amor, desejo e aversão. Sim, poderia sair daquele inferno psicológico quando quisesse. Já estaria fora, não fosse um preciosismo que o obrigava a contemplar a suposta dor e toda aquela cena irrelevante para sua consciência.

Num lugar pouco distante, ele, então, passeava com o espírito leve. Lápides mal escritas o cercavam, sem que ele sequer notasse. De fato, os mortos são apenas histórias (que podem ser esquecidas). Já um pouco cansado, após atravessar todo o terreno, tirou do bolso um cantil e com o sangue que havia nele regou as flores, todas mortas, plantadas em seu jardim. Olhou novamente para o horizonte, a imagem das tumbas se fundira com a luz do sol, formando um cenário desfocado. Pensou por alguns minutos no verdadeiro sentido daquilo. Deixou cair sobre a terra o cantil. Balançou rapidamente a cabeça, se desfez de todas as suas roupas, ateou fogo em tudo, e voltou para casa. Lar, doce lar.

Um comentário:

H. Machado disse...

Conseguiu mesmo atear fogo em tudo e voltar para o seu lar, em paz? Espero que sim. Não se esqueça, nada de amenizar. Pela raiz. Abraços