quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Antes da última vez

José, quando olhou no espelho, percebeu que perdera completamente a razão, em cada um dos seus passos tortos. Acariciou lentamente a braba lisa, fina, como quem estivesse acordando. Não haveria qualquer razão para fazer aquilo, senão fugir de tamanha agonia em seu coração. Já não pensava com a mente e isso era extremamente perturbador.

Pensou em escrever mais um texto, pseudoliterário, e foi então que percebeu que ninguém leu os últimos. Estava falando consigo mesmo, o tempo todo. Um monte de papéis velhos sem qualquer importância. Pensou em apagar todas as histórias, destruir todas as metáforas. Não seria a primeira vez que lhe passara na mente essa ideia extrema. Afinal, como seria zerar a vida?

Contemplou a flor da sala, tão bela naquela noite de pouca lua, em que luz se afunilava em reflexo na mesa como se sugasse toda a sua alma ao acaso. Olhou ao redor para ter certeza de tudo que tinha. Não ousava dizer, pois a dívida com Deus era grande demais para questioná-lo de qualquer coisa. Mas sentia-se só, em alguma instância de sua existência, de repente tão medíocre.

Lembrou de tantos afazeres incompletos, mas dali não se mexeu por motivo algum, que não fossem os próprios dedos a registrar. Ouvia músicas tristes, pois assim gostaria de estar naquele momento. Lamentava que tão curta fosse a noite para tanta intensidade de pensamento. Mas que porcaria de ausência é essa que sente a ponto de tropeçar nas letras?

Quando foi que ela o olhara daquele jeito pela última vez? Só poderia ser isso. E, sabia, em seu mais íntimo medo que gostaria de não pensar. Não ser. Não sentir. Não querer. Um pensamento fortuito lhe invade: “mas por que ela me acha um ser bom”? Sentia que não merceia, porque a tristeza causava exatamente essa sensação de pequenez em seu peito.

Correu os olhos pela tela limpa, sem qualquer sinal de que havia voltado. Sentiu, de repente, a noite mais longa. Não importa quanto sono teria na manhã seguinte e sabia que seria muito. Alucinações perturbadoras sobre a mesa vazia, o garçom de costas, o bar apagado. O silêncio era tão absoluto que a música parecia tocar em seu corpo, como parte de si.

Sabia que era um covarde. A palavra é forte, jamais ousaria dizer, mas no fundo sabia. Contentava-se com tamanha artimanha a ponto de inverter os valores. Pensava em tornar-se mau. Imaginou em como alimentar a maldade em seu coração, com a esperança falsa de que os maus sofrem menos.

Trombou sua vista com a frase imaginária, o velho clichê de toda sua vida: Você acredita no amor? Trocou respostas com sua mente, imaginando as duas únicas possibilidades, quando um ápice de percepção aparece na mente como um sábio de barba branca dizendo: “Acredito tanto que se multiplica o sofrimento por não saber”.
Olhou ainda mais triste para os móveis tristes, outrora tão alegres. Quantas histórias, quantas passagens e tudo que seu pensamento sabia eram as coincidências.


Um café, uma árvore, um livro, Não importa. Sempre haveria de vê-la antes da última vez.

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