quinta-feira, 3 de março de 2016

O mesmo lar

Chegou na casa, ainda mais velha do que antes, móveis de madeira escura, completamente empoeirado e parou 8 segundos para contemplar, sem disfarçar a surpresa em seus olhos. Estava uma desordem tão completa, tão absurda, que não podia imaginar. E quando foi a última vez que vera sua casa assim? Certamente, não era tão velha como hoje.

Andou lentamente, deixando a luz da manhã entrar suavemente pela fresta da janela, mas sem abri-la totalmente. Parou em frente à estante enorme, quantos livros inacabados, não escritos, não lidos. Quantas promessas perdidas, esquecidas, abandonadas. Sacou um exemplar da estante com uma só mão e o foleava com a atenção de um leitor e a perspicácia de um escritor (gostava de alternar os papéis).

Surpreendeu-se por completo, tamanhos impropérios escritos em letras garrafais. Para onde foram as histórias? Olhava ao redor com fúria, buscava os criminosos que apagaram os textos, tão cuidadosamente criados, um a um, frase a frase, palavra a palavra, letra a letra. Via vultos correndo, não enxergava com clareza, forçava a vista e o cérebro, buscava por associações.

De repente, um velho homem, tão velho, com a barba cinza, tão cinza, tocou-o no ombro sem dizer nada, mas como quem compreendesse a ira de um jovem que se tornara velho. Percebeu então, que as histórias continuam lá. Poderia ler o que quisesse, porque a realidade era simulada de qualquer jeito. Não, não estava sonhando. Tentava adivinhar pensamentos das pessoas. Por quantas vezes errara o diagnóstico. Quase sempre.

Tocou então seu próprio rosto, deixando os livros sobre mesa. “Não ousem entrar em minhas histórias”, gritava com a força do ódio de quem portava um punhal banhado em sangue. Sentiu sua barba cerrada, entendeu por completo a mensagem. Pensou em cortá-la rente, mudar o contexto. Não. Esperou por mais 8 segundos.

Saiu num gesto brusco pela porta, e a rua parecia igual. Os carros de um lado para o outro. As folhas das árvores balançavam com o vento que soprava sutil. Um sol ardente que fazia-o esquecer-se da chuva. E riu, como há tanto tempo não fizera. Ria compulsivamente, ao ponto de chorar.

Ajoelhou-se no meio da rua. Abaixou a cabeça olhando o asfalto trêmulo pelos raios solares. Suprimiu todo o ódio em seu peito, enxugou as poucas lágrimas e, quase nem acreditando, viu, de novo, aquela mesma cena. O mesmo rosto corado. Disse apenas: Não vá embora.

Um comentário:

H. Machado disse...

Consegui traçar cada pedaço de cena. E o coração ainda está acelerado. Você é você, de novo.