sábado, 27 de fevereiro de 2016

O labirinto

Era um trabalho árduo, mas ele gostava do que fazia. Não tinha pressa, esperava o momento exato, sem medir no relógio, em que as letras se juntariam em sua mente. Às vezes guardava tudo na gaveta da memória, para concretizar depois, com calma, com a dedicação que gosta de ter em cada vírgula, especialmente agora, quando os detalhes fariam a diferença. E não admitiria interferência, porque sim, era o momento único de canalizar tudo o que lhe parecia estranho o bastante para merecer o tempo.

Depois de uma lavoura intensa, colhia os frutos, tanto quando lhe dessem. Gostava de metaforizar assim. Pensava nas coisas como um fruto, para comer com as mãos, morder, sem qualquer cerimônia. E era isso que fizera, tanto quanto lhe permitiram. Quem dera tivesse mais.

Andava pela sala com muito cuidado, media cada um dos passos, vagarosamente. Cantava canções mentalmente, trabalhava o inconsciente e colecionava ideias posteriores. Não media palavras, menos ainda expressões. Estava num raro momento de liberdade de sensações e sentimentos, sem máscara, sem roupa, sem personalidade, sem filtro.

Sentara-se consigo mesmo, junto à mesa de bar, meia luz, como nos botequins dos anos 50. Conversava com sua outra face, fazia planos intangíveis, propostas imensuráveis. Sorria da impossibilidade de muitas ideias e debatia com a certeza de quem sabia o que falava.

Sentiu seu corpo girar, 360 graus. Rapidamente olhou de novo, viu aquele olhar que começa de baixo, sobe devagar, o rosto corado sempre. Prometeu uma, duas vezes. Tinha verdade nos olhos. Sabia de toda crença antiga, mas ainda assim insistiu nas palavras. Estava em festa. Em paz. Tranquilo. No labirinto.

Nenhum comentário: