segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Na capital

E o que surgirá além das escadas sutilmente cobertas por uma fina camada de sol matutino? Quais as pessoas com as quais irá cruzar para além das máquinas do submundo? Os olhos olham ansiosos para a paisagem que lentamente vai se formando, na velocidade em que os degraus avançam e engolem-se mecanicamente. Quando a vista abandona a escuridão dos túneis, ofusca-se levemente ao deparar-se com a claridade refletida nos bancos da praça. Num detalhe, à direita, pássaros concentram-se nos farelos deixados no chão acinzentado.

Nas largas avenidas quase não se percebe a existência de vida ao lado. A proximidade de mundos tão isolados provoca um estranho fascínio pela solidão. Mais alguns passos. A perversidade à esquerda de quem caminha, em letreiros garrafais, revela um lado selvagem da natureza humana, bem ao estilo “Aberto 24 horas”. O sexo como trabalho, diversão ou fantasia escondida no cenário proibido de cada um. A loucura habita os salões ou desfila do lado de fora, simples ponto de vista.

Nas grandes máquinas que trafegam, abaixo dos pés da cidade, uma diversidade estonteante. Alguns se rendem ao sono. Há os que se concentrem no horizonte, olhos arregalados, fixos. E o que dizer do velho, com barba rala e casaco surrado, olhando perdidamente para o nada, a espera da vida que nunca chegará? Bem perto, o rosto branco, com olhos envolventes, sugerem uma voz baixa, tão delicada quanto se imagina. Os cabelos revelam o tipo, denunciam preferências comuns.

Multidões que se esbarram, se espremem, se tocam sem perceber, sem nunca se reencontrarem. Há de ter algum sentido na rotina sofrida, rugas que se acentuam sem descanso. Mãos que trabalham e alimentam o corpo. Fome para a alma. Paz interrompida para o espírito. Gritos que disputam espaço. Idiomas inventados. Tudo por alguns trocados.

Tudo se desmancha ao anoitecer. As luzes dos faróis constroem um cenário novo. O retorno às casas, ao mundo de verdade, deixa que tudo lá encontrado, lá permaneça, como uma pintura viva que demorará a ser novamente vista. E pouco a pouco a mente retorna à pequenez do cotidiano esperado.

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