Três ou quatro doses. Talvez um pouco menos. Mas o corpo já apresentava os sinais de embriagues. A luz dos faróis dos outros carros também ofuscava a vista. A música estava no volume alto. Alto o suficiente para que sua alma sentisse a dramaticidade do momento vivido. Oito e meia da noite. Não é nenhuma metrópole, mas ainda encontra uma floricultura aberta. Compra um botão vermelho. Poderia roubá-lo, seria até mais charmoso, mas daria muito trabalho e o efeito seria o mesmo.
A rosa é colocada na parte superior do painel do carro, próximo ao pára-brisa. Segue numa velocidade média, para ainda conseguir apreciar a desgastada paisagem do caminho. Perde-se, não encontra a casa. Quinze muitos e já encontrou. Estaciona na esquina, desce, fecha a porta com cuidado, a rua ainda está movimentada, mesmo para a cidade pacata. E ele espera o momento oportuno.
A vê chegando, parece que alguém a acompanha. Sim, já era esperado. Sente a boca amargar como das outras vezes. O estômago reage como de costume. O rosto formiga. Na despedida, um leve beijo, não no rosto, na boca mesmo. O frio atravessa a espinha. Trêmulo, continua olhando, agora com mais cuidado para não ser visto. O cartão ainda está em branco, não será necessário rasgar. Solta a rosa ali onde está. Ela entra sorrindo, ele parte sofrendo.
No carro, voltando pra casa, tenta mudar a música, mas todas dizem a mesma coisa. O amor está em pauta. Incrível como o subconsciente nos trai. Nem as estações de rádios confortam. Pensa em desligar o som, mas o silêncio machucaria seus ouvidos, nessas circunstâncias. Enquanto dirige, rasga o recibo da floricultura. Melhor não ter que contar isso a ninguém, seria constrangedor demais para o seu ego.
O efeito do álcool já havia passado completamente. Mas seu fígado já parecia rejeitar outra dose. E isso o motiva a parar num bar e pedir mais uma. Um problema maior o faria esquecer a cena do beijo que lhe vinha à mente imperativamente, sem que nada pudesse ser feito para suprimir essa sensação.
Não tem vontade de ir para casa. Prefere não ter que responder a pergunta que fatalmente seria feita. “Por que tão cedo aqui?”. Seria necessário mentir, inventar uma história, de preferência alegre para não se permitir cair no choro. Nesse instante umas poucas lágrimas correm pelo rosto. Não pelo beijo, não pela moça, menos pelo intruso. Era uma auto-piedade. Uma raiva de si mesmo. De acreditar nas possibilidades. De tentar negar o conformismo.
Continua a dirigir. É terapêutico para ele. Na rua, as pessoas parecem bem demais. Ninguém sofre. Não há questionamento, nem inquietações. Sente-se desconectado. Procura na agenda, nenhum nome disponível. A situação só piora. Pensa em voltar para casa. Hesita. Encontra alguém no caminho, um aceno e nada mais. Um aceno que para ele estava com um letreiro luminoso pedindo por ajuda, uma palavra de paz. Passou.
No dia seguinte, o hálito denunciava a última noite e a primeira associação que lhe veio à mente: o beijo na despedida, a rosa caída na calçada. Pelos corredores, a moça passeia bem humorada, se aproxima. Ela, desnecessário detalhar sua beleza única, o encara amistosamente, com um sorriso e uma saudação. Ele sente vontade de abraçá-la, esquece-se do beijo, queria entregar-lhe a rosa, perdoa tudo nesse instante. Mas ela passa, sem que ele responda. Eles cruzam-se mais algumas vezes, antes que ele arrume as malas. Na bagagem, roupas velhas, na mente, velhas lembranças e no coração, saudade eterna dos tempos que nunca vivera depois de caída aquela rosa.
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