O som ensurdecedor indica o exato momento da transição: o final para os já exaustos e o início de um turno exaustivo para os ainda cansados homens de uniformes, padronizados tanto na vestimenta, quanto no sentido dado à vida, sem escolha, sem perspectiva, sem planos nem sonhos. As ações são as mesmas, sempre, sem mudanças.
Não pense. Não questione. Não espere. Não pergunte. Não reclame. Motorize seus movimentos. Execute. Mate a sua percepção, pare de contar, pare de refletir. Não imagine, nem sinta dor, nem ódio, nem amor. Siga o sistema, sem ao menos saber que o segue ou mesmo exista um. Olhar sempre a frente, de preferência para baixo. O tempo passa, mas você não o conta.
Melhor alimentar-se. É intervalo. Siga o ritual. Café amargo, biscoito água e sal. Poucos movimentos com a boca. Não há nada a ver com a fome. Apenas mantenha o cronograma. Pouco importa seu estômago. Esqueça que tem um. Na verdade, você não o tem. Nem mesmo pertence a si mesmo. Robotize seus atos. E lembre-se: robôs não pensam. Executam. Faça dessa forma, mas não faça associações.
Final do turno. Deixe o uniforme. Guarde equipamentos. Hora do descanso. De ir para a casa, lembrar-se que tem um lar. Retome sua vida. Ela volta a te pertencer nesse momento. Sonhe com o amor. Viva com ardor. Tenha esperanças. Chore, grite, liberte sua raiva, seu gemido de dor, seu sussurro de prazer. Sinta o sol novamente.
Mas não é mais possível. Você não se lembra mais. Não sabe como proceder. Não pode voltar atrás. Então você dorme tentando se lembrar. Acorda esquecendo seus sonhos. Apanha seu uniforme. A vida na fábrica segue. O vazio em você também.
4 comentários:
Até pensei em parafrasear alguém, mas não, quem sente é sempre a gente mesmo: é de ficar cheio de tanto vazio, que eu fico assim escasso pela saturação, e encontro o pequeno prazer na grande dor.
Muitas vezes pensei em agir como um robô. Pensar às vezes dói.
Talvez esteja aí um dos grandes segredos para a felicidade: sair desse circulo vicioso! Dizendo assim até parece facil, mas você sabe se é dificil?
Não sei se concordo, Valter. O "sistema" sendo um rio, tem gente que não vê felicidade em sair de dentro d'agua! Alias, eu mesma acredito que ha muita coisa a se fazer ali. Sim, eu penso que é possivel ser feliz dentro do rio, sim. Nadar contra a corrente, tentar mudar um pouco o rumo da corredeira, não é facil, nem alegre, e pode mesmo ser muito doloroso. Mas felicidade é tão subjetivo...
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